agosto 19, 2024
Formação VLT Fortaleza: as comunidades dos trilhos e a luta pelo direito de morar
Figura 01: Ercília, Jaqueline, Dona Terezinha e Dona Lúcia foram as responsáveis por ministrar a formação.
A formação iniciou com Ercília, moradora da Comunidade Aldaci Barbosa, contextualizando o processo de ocupação das margens dos trilhos, que se deu a partir da década de 50. Ela contou que a região era formada majoritariamente por pessoas vindas do interior que estavam num contexto de vulnerabilidade social, o que justifica a migração para o que era considerado o “final” da cidade. Já na década de 70, a cidade alcança essa área, que passa a ter proximidade com os bairros mais valorizados da capital. É a partir desse ponto que se inicia os conflitos fundiários nesta região.
Em 2009, Fortaleza foi anunciada como uma das cidades-sede da Copa do Mundo de 2014. Desde então, iniciou-se uma mobilização do poder público para a realização de grandes obras, estas com a justificativa de melhorar a mobilidade urbana do município, com o objetivo de atender os inúmeros turistas que viriam prestigiar as futuras disputas futebolísticas entre diferentes nacionalidades. No entanto, tais obras desconsideravam a realidade e a existência de inúmeros moradores, como é o caso das comunidades removidas pela obra do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT).
Figura 02: “Para eles, a gente não precisa participar da cidade” disse Dona Lúcia em uma de suas falas.
Segundo relatos das moradoras, na época ocorreram abusos verbais, tentativas de intimidação e remoções forçadas. Dona Lúcia conta que ouviu inúmeros absurdos das autoridades que acompanhavam as obras, incluindo frases como “o VLT é obra para mobilidade, não para habitação” e “vocês são uns invasores, terão direito somente ao que gastaram” - em relação às indenizações que seriam pagas às famílias removidas. Ainda, Ercília relembrou que em 2011 o irmão do então governador Cid Gomes, Ivo Gomes, referiu-se a comunidade Aldaci Barbosa como “aquela favelinha lá perto onde a gente morava” em uma reunião no Palácio da Abolição. 15 dias após, os dois fizeram uma visita ao local acompanhados de dezenas de policiais, advogados e secretários, com a tentativa de intimidar a população. Tentativa esta que não surtiu efeito, pois, imediatamente, moradores de outras comunidades ameaçadas pelas obras do VLT, militantes de organizações políticas e de movimentos sociais uniram-se aos residentes da Aldaci e expulsaram os irmãos Ferreira Gomes sob protestos.
Foi nesse contexto que surgiu o Movimento de Luta em Defesa da Moradia (MLDM) - movimento que antecedeu a FLMD. Desde o evento citado anteriormente, os moradores das diferentes comunidades afetadas reuniram-se com apoiadores e passaram a promover uma articulação contra as remoções. De acordo com as moradoras, as comunidades propuseram diferentes estratégias contra essas ações, de modo a adequar-se à realidade das diferentes áreas. Dona Lúcia conta que na comunidade João XXIII, por exemplo, ocorreu uma tentativa de cadastro social pela CAGECE, mas a população não aceitou. Com efeito, as obras do VLT sofreram um enorme atraso. Por outro lado, ainda que com muita resistência, as comunidades do Rio Pardo e do Lagamar viram os trabalhos do VLT iniciarem. No caso da primeira, o momento do corte das árvores foi o primeiro sinal do processo de mudança do ambiente construído, pois trata-se de uma enorme perda de qualidade de vida para a população tendo em vista que elas amenizavam o clima. No caso do Lagamar, as obras no viaduto da Av. Raul Barbosa sinalizaram esse início de transformação do ambiente construído e a necessidade de lutar para se contrapor a esse processo perverso.
Em 2014, partindo desse histórico de luta, surge a Frente de Luta por Moradia Digna com o objetivo de continuar a batalha pelo direito à cidade e à moradia digna em Fortaleza. Atualmente, a Frente possui como principais linhas de atuação a disputa pelo acesso à terra urbana de qualidade, democratização da gestão municipal, luta pela implementação das ZEIS, resistência às remoções e demais efeitos negativos provocados por Grandes Projetos Urbanos (GPUs) em execução e previstos para a capital. O ArqPET soma-se a essa luta acompanhando as pautas do movimento, visibilizando e tornando-as públicas, e prestando serviços de assessoria técnica quando necessário.
Figura 03: Membros da Frente de Luta por Moradia Digna junto do público presente na formação.
Dez anos se passaram desde a Copa do Mundo de 2014, quatorze desde o início da luta pelo direito de morar dos habitantes das comunidades dos trilhos, e o que se vê hoje é a incompetência do poder público em cumprir as promessas feitas à população, seja para a melhoria da mobilidade, seja para a moradia digna às pessoas removidas: as obras dos reassentamentos da população removidas pelo VLT não foram concluídas e somente um conjunto habitacional foi construído para abrigar as famílias. As demais famílias estão sujeitas ao aluguel social pago pelo estado. No depoimento das moradoras, há um desabafo: a depender do governo do estado, o aluguel social não terá fim tão cedo. Em suma, a luta não acabou e ainda está longe de acabar. É necessário se juntar à Dona Lúcia, à Dona Terezinha, à Ercília e à Jaqueline nessa jornada rumo ao direito à moradia digna. É preciso que essas vivências sejam repassadas e escutadas, para que o que aconteceu não caia no esquecimento e fique por isso mesmo. As comunidades dos trilhos possuem o direito de morar.
Referências:
FREITAS, C. F.S. Desfazendo o Direito à Cidade: investimentos na Copa do Mundo e assentamentos informais em Fortaleza, Brasil. Journal of Urban Affairs, 39:7, 953-969, DOI: 10.1080/07352166.2017.1328974
Fortaleza – Nota do Movimento de Luta em Defesa da Moradia (MLDM) (CE). Pela Moradia, 2012. Disponível em: <https://pelamoradia.wordpress.com/2012/04/18/fortaleza-nota-do-movimento-de-luta-em-defesa-da-moradia-mldm-ce/>. Acesso em: 19 de ago. de 2024.