agosto 10, 2019

Reflexão - O Depoimento de Jameelah McCregg sobre sua visita à Fortaleza



Em maio de 2019 aconteceu o workshop “Displacement, Planning and Citizenship” realizado pelo PPGAU+D, e o ArqPET, em parceira com o Departamento de Planejamento Urbano e Regional da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign (UIUC). Dentre as diferentes atividades,fomos à ZEIS do Bom Jardim, ao Centro de Defesa da Vida Hebert de Souza,visitamos o Lagamar para conhecer o ambiente transformado pela estação do VLT, à ocupação da Salgadeira e discutimos ainda a história de luta comunitária dos moradores pela urbanização. Nos dias seguintes fizemos atividades internas no Departamento de Arquitetura e Design da UFC onde apresentamos os trabalhos de alunos locais e estrangeiros. Alem disso, houveram diálogos com as moradoras do Bom Jardim e do Lagamar com o objetivo de produzir contra-mapeamentos e contra-narrativas sobre os territórios estudados. Como fruto de todas essas atividades a aluna Jameelah McCregg (UIUC) escreveu o seguinte depoimento:


Reflexão


Viajar para Fortaleza foi uma das experiências mais incríveis da minha vida. Mal sabia eu que eu seria tão bem recebida. Eu aprendi muito sobre a história do Brasil como um todo e a de Fortaleza especificamente. Conheci a história e as dificuldades atuais nas favelas e na luta por direito à moradia digna; Aprendi sobre tradições culturais que têm raízes no século XVI, mas ainda são muito relevantes atualmente. Também aprendi um pouco de Português e entendi como o meio ambiente define as interações humanas.


Balbúrdia


Uma das minhas maiores preocupações antes de viajar para o Brasil era a barreira da linguagem, que eu sabia existir. Baixei um aplicativo para celular chamado "Duolingo", uma ferramenta para aprender outras línguas, mas eu não me dediquei o suficiente para aprender nada mais que a frase "Eu sou uma menina". Para a minha sorte, uma parte mais que suficiente dos estudantes da Universidade Federal do Ceará (UFC) falam Inglês. Ainda assim, tinham emoções, sentimentos e situações que eles tentavam explicar para nós, mas não existiam palavras adequadas para traduzir do Português para o Inglês. 


Banzo foi uma das primeiras palavras intraduzíveis que aprendi e uma que é, provavelmente, a mais significativa para mim. Depois da minha apresentação sobre música como uma forma de resistência cultural, na qual eu falei sobre canções serem usadas para conectar pessoas afro- americanas e manter a esperança e a cultura vivas, um estudante da UFC se aproximou para me ensinar essa palavra. 


Banzo , ele disse, é uma palavra que descreve a profunda depressão sentida pelos africanos escravizados trazidos para o Brasil. Esse estado mental, que constantemente levava os africanos a cometerem suicídio, está fortemente relacionado a remoção forçada da cultura africana e, portanto, a saudade causada. É dito que religiões como o Candomblé e práticas como a Capoeira ajudam a "curar" banzo. Banzo é as vezes comparada à palavra Saudade , minha segunda palavra intraduzível. Saudade é o profundo estado emocional de nostalgia causada pela falta de algo ou alguém que você ama. A diferença entre essas duas palavras é que Banzo é muito específica para a experiência africana no Brasil e é caracterizada como triste ou negativa. Por outro lado, Saudade é comumente e geralmente utilizada no Brasil e tem mais uma conotação amorosa ou positiva. Por exemplo, alguns dos meus novos amigos brasileiros me enviaram mensagens dizendo "Saudades" com muito amor sendo sentido através da palavra.


Outra palavra e conceito que eu tive o prazer de aprender sobre foi Orixás . Em resumo,Orixás são as divindades que atuam como canais entre humanos e o ser supremo do Candomblé (uma religião brasileira de matriz africana), Olodumaré . Eu aprendi sobre isso quando nós visitamos um templo espiritual com o Professor Ricardo. Essa palavra é muito difícil de traduzir porque a palavra "divindade" ou "deus" não expressa completamente os Orixás e o seu papel. Todo ser humano tem seu Orixá designado, e o Orixá ajuda a solucionar os problemas da pessoa. Uma coisa que eu aprendi e me marcou muito é que os Orixás não se preocupam com o que é certo e o que é errado, eles apenas fazem o que é necessário; fica a critério dos humanos compreender como quiserem.




Domínios afetivos da Aprendizagem



Quando, durante o ano letivo, nós estávamos sendo preparados para o Brasil, tivemos que fazer várias leituras, a maioria delas baseavam-se nos nossos conhecimentos prévios de práticas de planejamento urbano. No entanto, nada se compara ao aprendizado adquirido pela prática; tem sentimentos, emoções e atitudes que você experiencia e vê sendo experienciado, que você normalmente não adquire em uma sala de aula. É isso que é chamado de domínio afetivo da aprendizagem.


O nível mais básico do domínio afetivo é receber. Isso envolve participar de uma forma passiva, apenas prestando atenção. Eu vivi isso durante os últimos dias da viagem. Nós tínhamos reuniões com os estudantes e os moradores das comunidades. Durante uma dessas reuniões, as jovens do Lagamar e do Bom Jardim falaram sobre o que inspirava elas a fazer o trabalho que elas fazem.


Quando a Lany e a Naelly falaram, eu fiquei tão emocionada. Para ser breve, elas duas falaram do trabalho que realizam como mulheres afro-brasileiras ativistas. Elas querem desafiar as narrativas que atualmente são feitas sobre a comunidade delas; narrativas geralmente propagadas pela polícia, de que seus lares são lugares ruins e perigosos. Elas reconhecem que o trabalho delas é muito perigoso. A polícia assedia, violenta e prende qualquer pessoa que eles acreditam estar associado a traficantes de drogas ou qualquer pessoa que lute ativamente contra essa brutalidade. Por outro lado, existem alguns traficantes que espalham terror nas suas comunidades, e os ativistas são, muitas vezes, vistos como ameaças para eles. Lembre-se que estas jovens (Lany e Naelly) não falam inglês. Ainda assim, eu tive arrepios e lágrimas no meus olhos ao ouvir elas falarem! Era possível sentir a coragem, paixão e determinação na voz delas. Eu fiquei tão inspirada e honrada por estar ao redor de pessoas jovens dispostas a viverem e morrerem por algo em que elas acreditam. Me fez lembrar do Fred Hampton, do Partido dos Panteras Negras de Chicago, ao dizer que ele acreditava que iria morrer na luta pela revolução. Eu senti que haviam revolucionárias naquela sala em Fortaleza.


Responder é outro nível do domínio afetivo. Isso envolve participar ativamente e responder aos estímulos. Uma experiência que eu tive relacionada a isso foi depois de visitar uma das “favelas”. Depois de ver as formas improvisadas de moradia que muitos dos fortalezenses vivem, eu tive uma conversa com dois estudantes sobre como a pobreza é às vezes romantizada. Ela surgiu depois que alguns de nós fizeram comentário sobre como é incrível que as pessoas conseguem tirar algo do nada. Depois nós começamos a falar sobre como esse comentário é problemático e como as pessoas não deveriam estar vivendo daquela forma. Ter aquela conversa foi mais transformador para minha experiência de aprendizado do que simplesmente estar ali.


A terceira experiência de domínio afetivo que eu tive foi enquanto eu estava trabalhando (e, eventualmente, apresentando) uma apresentação de slides sobre formas culturais de resistência. Até mesmo antes de chegar ao Brasil, eu sabia que queria falar sobre a Música Sacra Negra como uma forma de resistência cultural. O que eu não sabia é que eu também aprenderia e me sentiria conectada a uma prática cultural afro-brasileira. Eu aprendi sobre Capoeira, que é uma arte marcial afro-brasileira que combina dança e música, criada por africanos escravizados no século XVI. Aprender sobre Capoeira e realmente sentir a importância dela para as pessoas afro-brasileiras me fez sentir emoções que eu sinto quando eu escuto Música Sacra Negra. Essas tradições excedem o tempo.

Onde Comunidade e Universidade se conectam


Quando a Professora Clarissa nos contou que ela e seus bolsistas estavam trabalhando com os moradores das comunidades e, assim, nos garantiu que essas pessoas nos acompanhariam nas visitas às favelas, eu me senti muito mais confortável. Eu não sabia antes, mas os moradores são igualmente uma parte desse programa junto à Universidade de Illinois em Urbana-Champaign e à UFC. Isso foi uma ideia tão genial! Eu sou de Englewood, em Chicago, uma área que está sempre sendo discutida na mídia. Pessoas de todas as partes do mundo escrevem artigos sobre meu bairro sem ao menos terem ido lá ou sem ao menos pedido que nós, os moradores, contemos nossas próprias histórias.


O lado moral do jornalismo, da academia e das forças de planejamento nos força a nos perguntarmos “Nós temos mesmo permissão para estar nesse espaço ou para escrever essas histórias? Nós temos a obrigação de incluir os sujeitos que estudamos no trabalho que fazemos?”


Ano passado, eu fiz uma disciplina sobre política de habitação. Parte do curso envolvia a visitação de uma comunidade predominantemente afro-americana, da classe trabalhadora, e eu me sentia tão desconfortável. Desconfortável porque eu me perguntava se a comunidade sabia que nós iríamos e desconfortável porque a maioria da minha turma era tudo menos negra. Como estranhos àquela comunidade, ditamos o que vimos e como percebemos essas coisas.


Ao contrário, em Fortaleza, os residentes das comunidades estavam conosco por todos os passos do projeto. Afinal, essa é a luta e a história deles, mas ao sermos futuros planejadores, nós temos o papel de advogar por eles e de fazer as coisas na mesa enquanto eles fazem isso no chão. As mulheres do Lagamar e do Bom Jardim podem aprender mais sobre a parte formal do planejamento e essa experiência pode até inspirar elas a ingressarem na universidade e estudarem sobre planejamento como nós. Por outro lado, eu aprendi a levar o conhecimento de volta às ruas. O planejamento popular é provavelmente a forma mais antiga de planejamento. Eu testemunhei muito conhecimento, experiência e paixão nessas comunidades. As pessoas que eu conheci amavam e conheciam muito suas comunidades e elas se esforçam muito por justiça, igualdade e qualidade.

A ecologia transforma a forma como nos movimentamos


Como eu verifiquei o tempo antes de fazer as malas para Fortaleza, eu sabia que iria chover enquanto nós estivéssemos lá. Isso é muito comum em Chicago, onde chove o ano todo. Eu coloquei meu guarda-chuva na mala e me senti bastante preparada para o clima. Quando nós chegamos, chovia quase toda manhã. Para a minha surpresa, os fortalezenses pareciam mais surpresos e menos preparados para a chuva do que eu. De acordo com alguns estudantes com quem eu estava conversando, Fortaleza sofre com a seca há muitos anos, então eles não têm muita chuva. Além disso, o período de chuva já tinha passado, então aquela era uma chuva fora de época. Era como se nós tivéssemos levado a chuva à Fortaleza!


Lagamar tem um canal que divide a comunidade, então já tem água lá. Junte isso ao fato de que muitas das casas são pequenas, curtas e construídas de forma modesta, é fácil ocorrer alagamentos. O que aconteceu em um dia que choveu muito. Todos os pertences de alguém poderiam ser danificados ou extremamente molhados, das roupas aos colchões. As pessoas em Fortaleza não possuem secadores de roupa (não sei se isso é algo comum em todo o Brasil), então elas estendem as roupas do lado de fora das casas para secar. Então, eu fiz isso um dia antes de vir embora e as minhas roupas levaram chuva! Isso pode ser bastante sério para as pessoas que não têm muitas roupas; e se alguém precisar ir ao trabalho ou à escola e as roupas delas estiverem molhadas pela chuva?


Além disso, lembrando que as pessoas têm lugares para ir, o trânsito fica muito pior e andar a pé é muito difícil quando a chuva começa porque quase toda a cidade alaga ou fica com grandes poças de água. Eu acho que o sistema de drenagem em Fortaleza não é tão eficaz quanto o de outros lugares, como Chicago. Eu gostaria de ver um plano abrangente que aborda a drenagem e chuva, o transporte e a habitação, já que estes são todos problemas interconectados.


Adeus, por enquanto...

Minhas experiências e tudo que aprendi em Fortaleza ficarão comigo para sempre (eu espero). Eu não posso esperar para ver como isso vai influenciar meu último ano na universidade, minha carreira, minhas relações e a minha cidade natal, Chicago. Eu espero que a UFC possa visitar a UIUC e Chicago algum dia. Estou animada para visitar Fortaleza de novo e aprender algo mais.


Jameelah McCregg

Aluna da graduação em Planejamento Urbano na Universidade de Illinois
Texto elaborado para o trabalho final da disciplina
UP 428 - Mapeamento Collaborative e Zoneamento Includente.
Professores Ken Salo e Clarissa Freitas
(tradução do Texto Original por Debora Costa, Bolsista do ArqPET/UFC )
30/06/2019

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