maio 23, 2018
As normas de parcelamento do solo para um urbanismo e qualidade para todos
[Por Clarissa Freitas]
Como é de conhecimento dos que acompanham o ArqPET, temos monitorado os empreendimentos que são colocados para votação como “projetos especiais” juntos à Comissão Permanente de Avaliação do Plano Diretor (CPPD) de Fortaleza. Um componente do nosso projeto de democratizar as informações urbanísticas é o mapeamento todos os empreendimentos que já foram aprovados na comissão, que se utilizaram de regras urbanas diferenciadas daquelas que regem o desenvolvimento urbano ordinário da cidade. Este post avança nesta direção de buscar entender o que está em jogo ao permitir que grandes projetos urbanos sejam considerados “casos excepcionais”.
No caso da ultima 97a reunião da CPPD, a excepcionalidade refere-se não às regras de uso e ocupação do solo, mas às regras de parcelamento urbano e isso pode causar muito mais prejuízos à cidade. De acordo com a política urbana brasileira, existem dois momentos de licenciamento (aprovação) de um empreendimento urbano pelo poder público municipal. O primeiro passo é a aprovação de um projeto de parcelamento urbano, onde as quadras são desenhadas e proprietário do terreno original (gleba) é obrigado a doar áreas públicas destinadas ao sistema viário e praças (bens de uso comum do povo) e áreas destinadas à construção de equipamentos sociais e habitação de interesse social (bens dominiais). Só após a aprovação do projeto de parcelamento do solo é que os lotes (ou parcelas) podem ser registrados em cartórios de imóveis e vendidos. Sem essa anuência da prefeitura do projeto de parcelamento, os lotes permanecem ilegais. Após esse passo, os lotes são vendidos, e os diversos proprietários podem solicitar a aprovação dos projetos dos edifícios de acordo com os parâmetros de uso e ocupação do solo (recuos, gabarito, adequação de uso ao sistema viário, mínimo de taxa permeável etc) relativos às divisas dos seus lotes.
Assim, a discussão dos parâmetros de uso e ocupação, que incidem sobre o edifício no lote, não pode ocorrer sem que o projeto de parcelamento seja aprovado, por razões óbvias: o lote não existe ainda! E para ele existir, o proprietário da gleba original deve destinar espaços para que os usos não lucrativos (circulação, área de lazer pública, habitação social etc). A existência de um lote urbano é condicionada às doações de áreas públicas. Entretanto, durante a 97a reunião da CPPD, essa questão foi absolutamente desconsiderada. A forma como um empreendimento da Assembleia Legislativa foi apresentada aos conselheiros simplesmente desconsiderou o limites do lote do empreendimento em questão. E isso tem uma enorme gravidade tendo em vista que o limite do terreno que consta na planta do empreendimento avança em uma área que era para ter sido doada ao poder publico, que se localiza do lado da futura estação do VLT do São João do Tauape.
Na 97a reunião da CPPD em 09 de maio de 2018 a SEUMA colocou em votação a definição de recuos para um projeto de um edifício administrativo cujo interessado é a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, localizado na avenida Ponte Vieira. Entretanto, o relatório (n2 CENOR/CPPD) enviado aos membros não possuia as plantas do projeto . Em virtude da ausência de informação, manifestamos voto contrário. Como ocorre frequentemente, esse foi o único voto contrário da comissão e o pleito foi aprovado.
Trata-se de uma situação corriqueira. O fato que vimos aqui chamar atenção, porém, é mais grave do que a simples votação de um projeto sem a devida informação necessária. E sim a desconsideração das normas de parcelamento do solo. Ao receber as plantas do projeto em votação e a planta do parcelamento (figura 01) em que o terreno está inserido, aprovada em 1996, percebemos que o projeto do empreendimento avança sobre uma área doada para uso público de 1482m2. Ao consultar o Google Earth (figura 02) vimos que, no inicio de 2011 esta área possuía duas ocupações irregulares: um pequeno grupo de cerca de 20 casas com registros de existência já em 1996 e o muro do terreno do empreendimento votado que avançava sobre a área doada. Ou seja, o proprietário do terreno avançou irregularmente sobre a área doada ao poder público se apropriando desta área em sua quase totalidade.
Figura 1 - Planta Loteamento |
Figura 2 - Vista Aérea (Google Earth) |
Durante as obras do VLT, o poder público desapropriou as cerca de 20 famílias, que tiveram suas casas demolidas muito embora o VLT não tenha utilizado do terreno que eles ocupavam. Contraditoriamente, entretanto, a apropriação indevida da área pública permaneceu intacta. Para agravar esta situação, não apenas contraditória, mas injusta, a área 1482m2 doada situa-se em uma localização privilegiada entre a futura estação do VLT e o referido empreendimento da Assembleia. Desta área em franco processo de valorização imobiliária, os moradores de baixa renda foram expulsos, enquanto o muro do empreendimento em questão permanece. A versão do projeto apresentada na reunião da CPPD (figura 03) não corrige o limite do lote do empreendimento da Assembleia, que permanece avançando indevidamente sobre a área doada ao poder público. Técnicos da SEUMA colocaram em votação apenas os recuos, sem discutir essa grave questão dos limites do lote, e isso foi aprovado com apenas o voto contrário da UFC.
Figura 3 - Projeto apresentado na CPPD |
Ao trazer essa situação para uma comissão de técnicos da SEUMA, no dia 14 de maio, fomos informados que o registro do lote do empreendimento da Assembleia (matriculas 14882 e 14883) foi realizado por mandato judicial e não faz menção ao referido parcelamento. E que o processo completo - ao qual não tivemos acesso, apesar de ter solicitado - refere-se a um acordo do proprietário com a Prefeitura, para que a doação de áreas públicas adicionais (obrigatórias pela lei federal de parcelamento vigente) seja realizada em outros locais da cidade sem especificar quais seriam estes. Os técnicos da SEUMA comprometeram-se a verificar essa informação nos cadastros de terra públicas do município. Informaram, entretanto, que os referidos 1482m2 haveriam sido doados com a finalidade da construção do alargamento da avenida Jangadeiros (ver figura 04), projeto que não possui mínima condição de viabilização devido à quantidade de remoções e de destruição urbana que acarretaria, e que permanece sem previsão orçamentária de execução.
Figura 04 - Planta do Terreno com Estação |
No momento, ao que nos parece, não há nem a certeza de que esta área de 1482m2, localizada ao lado de uma estação de VLT, e indevidamente apropriada seja efetivamente e legalmente de domínio público. Ou seja, 1482m2 ao lado de uma estação de transporte urbano estaria sem dono. Trata-se de uma situação bastante grave, especialmente porque temos conhecimento de famílias vizinhas que moravam de aluguel que foram expulsas de suas casas como resultado de uma expectativa de valorização imobiliária dos proprietários.
Não é de estranhar que Fortaleza não tenha praças, nem áreas de proteção ambiental, nem terra destinada a habitação social em bairros centrais. Estes usos são protegidos pela legislação de parcelamento, mas não há um controle do poder público sobre a reserva de terras os mesmos. O loteador, por sua vez, não se interessa em destinar parte da gleba para tal finalidade, pois os enxerga como usos que irão reduzir a sua margem de lucro, e/ou impor desvalorização imobiliária (afinal habitação social no Brasil ainda é associada a violência, infelizmente). O caso votado na 97a reunião da CPPD é representativo desse processo injusto de produção do espaço urbano no Brasil. Onde o loteador destina terra para o sistema viário, afinal de contas é ele que viabiliza a produção dos lotes, mas não cumpre com sua responsabilidade socioambiental na produção da cidade.
Tendo em vista que a função do arquiteto urbanista é defender o interesse coletivo e a qualidade ambiental urbana para todos os moradores de forma inclusiva, e considerando a função social da Universidade Pública, reiteramos nosso apelo para que os órgãos de planejamento urbano da Prefeitura de Fortaleza envidem todos os esforços necessários no sentido de tomar posse desta área previamente doada, revertendo-a ao domínio público, e conferindo-lhe uma finalidade de interesse público. Solicitamos ainda que as áreas públicas de doação obrigatória do referido parcelamento, (relativas a áreas verdes, institucional e fundo de terra), sejam devidamente identificadas, condicionando a aprovação do empreendimento à solução destas pendencias.