maio 22, 2010

Planejamento para a crise urbana no Brasil

Algumas propostas visando mudar o rumo socialmente excludente e antidemocrático que orientou o crescimento das cidades no Brasil


Por Emily Cattani

Capítulo 2 do livro Brasil, Cidades de Ermínia Maricato



“O problema maior não estaria na imperfeição de nossas instituições e formas políticas, mas talvez em que temos sido, no século que acaba de fundar-se, república sem republicanos, democracia- nos curtos períodos de sua precária vigência – sem democratas e federação sem federalistas.
(Francisco de Oliveira)






O Planejamento urbano é possível?


O planejamento urbano brasileiro é competência do Estado e este é expressão das classes dominantes. Neste cenário é um desafio planejar uma cidade de e para todos.  

Os estudos acadêmicos produzidos pela Anpur* e pelas universidades é de caráter crítico e não propositivo, pois é complicado generalizar um planejamento sem produzir status.
*Associação Nacional de Pós-Graduação em Pesquisa e Planejamento Urbano 

Nos governos municipais democráticos pós-ditadura havia iniciativa, mas faltava conhecimento para uma construir uma proposta urbanística. Porque as propostas implementadas no Primeiro Mundo não cabiam e não cabem na realidade brasileira.



Limitações no planejamento democrático

1. “Uma sociedade desigual produz cidades desiguais” - a primeira impossibilidade é a de tomar o ambiente construído independentemente da sociedade que o constrói e ocupa.

2. Outra são dificuldades burocráticas geradas pela distância entre o discurso e a prática, além da origem exógena (Europa, EUA) da inspiração. 

Assim, temos como resultados:

a] Influência do poder econômico e político na aplicação das leis.
b] Cidadania restrita e relações de privilégio.
c] Intervenção do poder privado na esfera pública.
d] A cultura usada como berloque – a cultura é usada para absorver a mão de obra ociosa. Uso clientelista da máquina pública.
e] Distanciamento entre realidade local e da aplicação da lei – a concepção do trabalho como coisa degradante contribuiu pra esse distanciamento da realidade. A implementação de propostas fica nas mãos de fiscais em pequenos números e/ou mal pagos e/ou desaparelhados e/ou baixa escolaridade (herança do ensino superior que era destituído de prática).

Há muito o que fazer, pois a realidade grita por uma resposta que deve , necessariamente, prever ações e investimentos no tempo. E isso exige planejamento.


Do “Consenso de Washington” ao “Plano Estratégicos”

A reunião do Consenso de Washington (1989) consistia na definição da receita para o desenvolvimento (cidades globais): disciplina fiscal, racionalização dos gastos públicos, reforma tributária, liberalização financeira, regime cambial, liberação comercial, investimento direto estrangeiro, privatização, desregulamentação e propriedade intelectual.

A receita, no Brasil, foi seguida à risca; máxima abertura à importação de bens e serviços e a entrada de capital de risco. Surgia a realidade das privatizações.

Em nível local, o Plano Estratégico cumpre o papel de desregular, privatizar, fragmentar e dar ao mercado um espaço absoluto. Ele trata da “cidade corporativa” ou “cidade pátria” (deve investir nela mesma), da “cidade mercadoria” (deve vender-se) e da “cidade empresa” (deve ser gerenciada como empresa privada competente).

O Consenso de Washington e o Plano estratégico se complementam: um em nível nacional e outro em nível local. 

Fatores que contribuíram para o sucesso comercial desse modelo: a participação democrática, a falência da matriz urbanista modernista e a falta de perspectivas dos dirigentes municipais diante da crise fiscal e do recuo dos Estados centrais em relação às políticas públicas (deixou de lado o urbanismo burocrático e trouxe a perspectiva de um novo papel político e econômico, mas sem solução para os problemas sociais).



“Qual o poder do poder local?”


Jeroen Klink discorre sobre a importância da macroeconomia para a instância local. Nos países do Primeiro Mundo o Estado continua a dirigir a política macroeconômica (União Européia), implementar políticas regionais e implementar políticas fordistas/ keynesianas. Admite-se que os impactos internacionais agem sobre as cidades.


Os governos municipais sentiram o impacto do corte dos recursos destinados às políticas sociais tradicionalmente (pelo menos a partir de 1930) concentradas na esfera federal e que passaram por um movimento contrário a partir de 1988.

Em 1986, as capitais brasileiras recuperam o direito de eleger diretamente seus prefeitos (pressão direta da população) – os prefeitos implantaram programas de combate ao desemprego e políticas provisórias. Dependendo do nível do impacto das políticas macroeconômicas, o poder local pode desviar a atenção sobre a real solução dos problemas.

Nenhuma política de cunho local poderia reverter o impacto da macroeconomia – incluindo a orientação política nacional voltada para a abertura radical da economia brasileira.

Na região a macroeconomia influi fortemente no destino das cidades. Ex: Centro-oeste cresce (agrobusiness para exportação) e o Sudeste industrializado sofre mais que qualquer região. 

É nos governos municipais que as pressões sociais, decorrentes da crise econômica, eclodem inicialmente. Ex: problemas com a habitação quando há enchentes, desmoronamentos devido ao mau uso do solo. Desde o fechamento do Banco Nacional de Habitação (1986), o Brasil não apresentou um desenho consistente de política habitacional.

O que realmente interessa antes de passar às alternativas de propostas para um urbanismo democrático é revitalizar a autonomia do poder local na solução de problemas estruturais. Além da ineficácia das ações pontuais e da guerra fiscal favorecendo apenas a esfera privada. Estamos propondo a construção de uma rede de cidades visando retomar a construção da federação e da nação. 


Cidades brasileiras: pressupostos para uma reorientação democrática e sustentável




O Plano Estratégico não assume a cidade como um todo, priorizando as localidades com mais potencial de rentabilidade imobiliária. Criar um caminho de planejamento e gestão que contrarie o rumo predatório – social e ambiental – que as cidades brasileiras seguem atualmente exige alguns pressupostos:

- Criar consciência da cidade real (não só da “oficial”) e indicadores de qualidade de vida. – a eleição de indicadores é fundamental para construir antídotos contra o marketing político.

- Criar um espaço de debate democrático: dar visibilidade aos conflitos – dificilmente esse espaço conduziria a sociedade ao fim dos conflitos.


- Reforma administrativa. Eliminando os privilégios, a estrutura administrativa paroquial e a tradição de distribuir cargos municipais à diferentes partidos.


- Formação de quadros e agentes para uma ação integrada – qualificação de profissionais na área técnica e na prática, além da busca por uma “cidade saudável”.


- Aperfeiçoamento e democratização da informação – a cidade ilegal não é cadastrada.


- Um programa especial para regiões metropolitanas – foco na requalificação ou urbanização de áreas com ocupação consolidada e irregular.


- A bacia hidrográfica como referência para o planejamento e gestão.


- Formulação de políticas de curtíssimo, médio e longo prazo.




No centro da questão urbanística está o fundiário e o imobiliário


As moradias urbanas construídas a partir da invasão de terras mostram que a invasão, espontânea ou organizada, é uma alternativa habitacional que faz parte da estrutura de provisão de habitação no Brasil. Nesse sentido, apesar de ilegal, ela é institucional: é funcional para a economia (mão-de-obra mais barata), para o mercado imobiliário privado, e é ainda funcional para a orientação dos investimentos públicos dirigidos pela lógica da extração concentrada e privativista da renda fundiária. A ilegalidade é tolerada porque é válvula de escape para um mercado fundiário altamente especulativo.  

Os conjuntos habitacionais de promoção pública foram localizados em áreas desvalorizadas, em zonas rurais ou periféricas, alimentando a manutenção de vazios e a expansão horizontal urbana.

Muitos urbanistas brasileiros de esquerda tentaram implementar o solo criado – política que assegura ao poder público a captação de valores imobiliários decorrentes de seus próprios investimentos.

O controle e localização dos investimentos públicos, certamente é mais eficaz para a democratização da cidade – já que influi no mercado fundiário e imobiliário – do que a arrecadação permitida pelo solo criado, mesmo nas cidades onde o mercado imobiliário é forte, o que não acontece na maioria delas.

Nas cidades de Primeiro Mundo há fiscalização e controle sobre o uso e ocupação o solo. No Brasil, a política clientelista municipal promoveu a privatização do uso: por meio de concessões de terras urbanas, clubes ou associações de caráter privado se encontraram em áreas públicas onde houve concessão por longos períodos (90 anos) e isenção de IPTU por serem classificados como entidades religiosas ou benemétricas.

Desapropriações de terras podem gerar muitos gastos com indenizações graças
A) a discutível correção financeira do valor a ser pago, que inclui juros e correção monetária;
B) as técnicas de perícia que tendem a inflar o preço;
C) a interpretação da lei pró-proprietário;
D) a inépcia da administração pública em defender os interesses públicos; ou
E) pura e simples corrupção.

Hoje as leis facilitam a regularização de áreas ocupadas, mas não apontam para uma ampliação de um mercado popular de moradia. Assim o mercado imobiliário informal ganha ainda mais força. 



Instrumentos Urbanísticos



Os instrumentos estão disponíveis aos governos municipais para:

1. Ampliar recursos;
2. Regular o mercado (moradia à custo baixo);
3. A captação da valorização fundiária e imobiliária;
4. Recuperação de instrumentos em infra-estrutura;
5. Regularizar/urbanizar áreas irregulares;
6. Estocar terra para promoção pública de moradia;
7. Garantir a preservação ambiental e o crescimento urbano sustentável;
8. Preservar o patrimônio histórico, arquitetônico e paisagístico.

Nenhum instrumento é adequado em si, mas depende de sua finalidade e operação.



O contexto do Estatuto da Cidade


Em 1963 foi realizado o Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, em Petrópolis (RJ), quando 50% da população era urbana. O Golpe Militar aconteceu e foram criados, juntamente com o SERFHAU, o Sistema Financeiro da Habitação e o Banco Nacional de Habitação, que se estenderam até os anos 80 quando aconteceu a crise do petróleo.

Outras providências do planejamento tecnocrático conservador:

- Institucionalização das regiões metropolitanas;

- Criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (os planos diretores se ploriferam);


- Igreja funda a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) – uso do solo e ação pastoral


- 1979: o Congresso Nacional aprova lei que estabelece diretrizes para o parcelamento do solo e a criminalização do promotor de loteamentos ilegais;

- 1983: o governo militar envia o projeto de lei do desenvolvimento Urbano (começa a saga do Estatuto da Cidade);
- 1985: é criado o Ministério do Desenvolvimento Urbano;

Em 1986 o BNH foi extinto e sua herança transferida para a Caixa Econômica Federal. Os movimentos sociais também passam por um refluxo nos anos 90.

No final dos anos 90, o FMI orienta o governo de FHC a suspender investimentos públicos em setores sociais estratégicos como energia e saneamento, além de dificultar o crédito habitacional (subordinação do governo brasileiro ao FMI e sua intervenção na gestão das cidades).

Alguns resultados obtidos no avanço legal para a gestão urbana democrática (sem mobilização social):
- Aprovação do direito à moradia como preceito constitucional;
- Aprovação do IPTU progressivo.



O conteúdo do Estatuto da Cidade


Cunho social:
-Audiência do poder público municipal e da população interessada nos processos...
- Simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias para reduzir custos e o aumento da oferta de lotes e unidades habitacionais;
- Isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social;

Instrumentos:
- Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e associações representativas dos diversos segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania.

Há a garantia de “assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos” (Const. 88) 

Instrumentos referentes à regulação fundiária:
- usucapião especial de imóvel urbano (apenas imóveis privados);
- concessão de uso especial para fins de moradia (imóveis públicos);
Algumas favelas estão situadas em áreas públicas, contudo os moradores reivindicam sua terra através do usucapião.

A Operação urbana e Outorga onerosa do direito de construir podem representar um avanço social e político ou reafirmar o primado absoluto do mercado. 


É fundamental que a regularização jurídica seja acompanhada de uma regularização urbanística, isto é, de investimentos públicos que assegurem padrões mínimos de urbanização. O Plano Diretor é tomado como parte integrante do processo de planejamento municipal, que inclui ainda o plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual participativo e, normalmente, um plano de transporte.



Lei de Zoneamento 

Utopia de dirigir ordenadamente o uso e a ocupação do solo, com regras universais e genéricas, separando usos, níveis de circulação, tipologias de edifícios, padrões de ocupação do solo, etc. Contribui para expandir o mercado habitacional e baratear a moradia.

Críticas:

1. Bastante descaracterizada com grande parte das edificações e seu uso, fora da lei;
2. Dificulta a ampliação do mercado privado voltado para camadas mais baixas;
3. Desconsidera a questão ambiental;
4. Difícil compreender e aplicar;
5. Ignora as potencialidades dadas pelos locais;
6. Contribui para a segregação e a ilegalidade;








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